Bilhete de amor, terço e alianças: objetos saem intactos da tragédia aérea em Vinhedo e viram relíquias para famílias enfrentarem saudade
Bilhete de amor, terço e alianças: os objetos recuperados da tragédia aérea em Vinhedo
Um terço de madeira com o crucifixo quebrado, uma foto com declaração de amor, alianças e um bilhete marcado por fuligem. Esses foram alguns dos objetos pessoais encontrados entre os destroços do voo 2283 da Voepass, que caiu em Vinhedo (SP), em 9 de agosto de 2024.
Nenhuma das 62 pessoas a bordo sobreviveu. Nos meses seguintes, parte dos pertences foi devolvida pelas autoridades. Um ano depois da tragédia, o g1 reencontrou as famílias para mostrar nomes, rostos, histórias e sonhos interrompidos das vítimas. Leia alguns dos relatos abaixo.
Neste fim de semana, o g1 trouxe à tona um depoimento exclusivo de um ex-funcionário que presenciou a última manutenção do ATR 72-500 e revelou que, horas antes de decolar, o avião apresentou uma pane no sistema de degelo. No domingo, também foram revelados áudios inéditos que mostraram parte das últimas comunicações entre a tripulação e o controle de tráfego aéreo de São Paulo.
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As reportagens integram um conteúdo especial do g1 após 1 ano da queda do voo 2283, a maior tragédia da aviação brasileira em quase duas décadas. Na próxima quarta-feira, 6 de agosto, será lançado no portal o web-documentário “81 segundos”, que reconta o desastre. Veja o trailer abaixo:
’81 segundos’: assista ao teaser do documentário sobre a tragédia aérea em Vinhedo
‘Eu te amo além da matéria’
Pedro Gusson, de 26 anos, era conhecido pelo bom humor e pela intensidade. Gostava de trabalhar, jogar videogame e viajar. Era casado com Naira Gusson, amor de adolescência, e os dois sonhavam em comprar uma Kombi e dar a volta ao mundo, além de construir uma família.
A esposa, Naira, conta que a viagem ao Paraná era a trabalho, e ele insistiu para voltar de avião para passar o Dia dos Pais com a família em Bom Jesus dos Perdões (SP). A passagem havia sido remarcada três vezes.
Pedro Gabriel Gusson do Nascimento, de 26 anos, morreu na tragédia de Vinhedo (SP). Na foto, ele está ao lado da esposa Naira.
Arquivo pessoal
Entre os pertences devolvidos, veio uma pequena foto do casal, com uma frase escrita por ela: “Eu te amo além da matéria.” Pedro levava o bilhete em todas as viagens, e o papel voltou praticamente intacto.
“Mesmo que o tempo dele tenha sido curto aqui, ele me deu uma vida inteira. Em cada dia que a gente viveu. E não falo só por mim, falo pela família dele também, porque ele sempre foi um filho incrível, um irmão incrível, um tio incrível. Ele sempre foi uma pessoa muito incrível, um amigo também”, conta Naira.
Bilhete com mensagem de amor era levado por Pedro em todas as viagens; depois do acidente, esposa dele conseguiu recuperar a foto
Arquivo pessoal
Terço sem cruz
Humberto Alencar tinha 61 anos e era copiloto do voo. Criado em Iporanga (SP), sonhava com a aviação desde menino. Aos oito anos, pedia ao pai que o levasse ao Aeroporto de Congonhas, em São Paulo (SP), para ver os aviões decolarem.
Era muito religioso e um pai apaixonado. Era tudo que a companheira, Rosana, havia pedido em oração quando ainda era adolescente: “pedi que fosse mais velho do que eu, de cabelo grisalho, óculos, que gostasse de Roberto Carlos e fosse muito rezador”, conta ela, sem conseguir evitar o sorriso.
Humberto Alencar, copiloto do avião, com o filho mais novo, Bernardo
Arquivo pessoal
Além de fotos de Humberto, a casa onde Rosana e o filho do casal vivem hoje é repleta de mensagens e figuras religiosas, pequenos lembretes da fé que sempre guiou a família.
Como reflexo da devoção, o copiloto fazia questão de viajar sempre com um terço de madeira no bolso direito da calça. O objeto foi recuperado quase intacto dos destroços.
“No dia do velório dele, eu estava conversando com o padre, mostrei o terço e ele falou ‘que engraçado, né? Sobrou um pedacinho da cruz. A senhora sabe o que significa?’. Eu disse não. Ele falou ‘significa que para quem vai para o céu, não precisa de cruz. Esse pedaço da cruz que sobrou é para você, para o seu filho”, lembra Rosana Ferreira.
Rosana, esposa do Humberto, segura terço recuperado após o acidente
Rodrigo Coutinho/QPS
Bilhete de amor
Hiales e Daniela Fodra, de 33 e 30 anos, estavam profundamente apaixonados tanto um pelo outro quanto pelo futuro. Viviam um período de conquistas e mudanças: Daniela e o marido estavam a caminho da primeira competição profissional de fisiculturismo dela nos Estados Unidos.
Também trabalhavam juntos para, em breve, abrir uma academia só para mulheres. Dividiam uma vontade de conhecer o mundo e já tinham visitado destinos dentro e fora do Brasil, colecionando ímãs de geladeira. Apaixonados por crianças, também tinham planos de engravidar em 2025.
“Quando você vê a troca de mensagem entre eles, você vê o quanto foi injusto cessar isso. Ela [Daniela] fala: ‘Nossa, você é tão bom pai de pet, eu não vejo a hora de ter as nossas crianças, porque é a semente que a gente vai deixar nesse mundo e você é o pai que eu sonhei pros meus filhos'”, conta Rugles Fodra, irmão de Hiales.
Daniela e Hiales Fodra, vítimas do acidente aéreo em Vinhedo (SP)
Arquivo pessoal
A paixão dos dois virou tradição e, mais tarde, lembrança. Era comum que eles trocassem bilhetes de amor entre si, que acabavam espalhados pela casa ou pendurados na porta da geladeira. No dia do acidente, um bilhete escrito por Hiales foi recuperado entre os pertences da esposa.
“Que você sempre saiba que todo o meu ser te ama absurdamente! Você é incrível! Você é minha alegria! Te amo demais”, diz a mensagem, agora marcada por fuligem, escrita à mão por ele. As alianças do casal também foram recuperadas, e permaneceram atadas por uma fita branca no velório.
Bilhete recuperado dos destroços do acidente aéreo em Vinhedo (SP)
Rugles Fodra/Arquivo pessoal
O acidente
O avião com 58 passageiros e quatro tripulantes caiu no condomínio Residencial Recanto Florido, no bairro Jardim Florido, no início da tarde.
A aeronave decolou às 11h58 e o voo seguiu tranquilo até 12h20. Segundo dados da plataforma Flightradar, a aeronave subiu até atingir 5 mil metros de altitude às 12h23, e seguiu nessa altura até as 13h21, quando começou a perder altitude.
Nesse momento, a aeronave fez uma curva brusca. Às 13h22 — um minuto depois do horário do último registro — a altitude estava em 1.250 metros, uma queda de aproximadamente 4 mil metros. A velocidade dessa queda foi de 440 km/h.
A aeronave atingiu o quintal de uma casa do condomínio e os moradores saíram ilesos. Ninguém em solo ficou ferido. O morador da residência atingida afirmou que a família ficou em choque.
O relatório preliminar do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), divulgado no dia 6 de setembro do ano passado, trouxe informações relevantes sobre o acidente em Vinhedo.
Uma dessas informações foi de que a tripulação relatou uma falha no sistema antigelo. O relatório, contudo, não conseguiu confirmar, com base nos dados da caixa-preta, se isso de fato aconteceu e impactou o desempenho da aeronave.
Pilotos ligados à companhia também relataram viagens exaustivas, condições precárias e ligações da empresa durante as folgas. Após o acidente, passageiros também compartilharam nas redes sociais experiências ruins envolvendo a companhia.
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Destroços de avião em Vinhedo
Miguel Schincariol/AFP
O que diz a Voepass
Em nota, a Voepass informou que a queda do voo 2283 foi “o episódio mais difícil” da história da companhia e que, um ano após a tragédia, segue “solidária às famílias das vítimas”, mantendo “suporte psicológico ativo” e apoiando homenagens realizadas ao longo do período.
A empresa afirmou que “sempre atuou cumprindo com as exigências rigorosas que garantem a segurança” das operações e que a frota “sempre esteve aeronavegável e apta a realizar voos”, conforme padrões internacionais.
A companhia também afirmou que colabora com as investigações em andamento e reafirmou compromisso com a apuração dos fatos e com “a melhoria contínua nos processos de segurança da operação aérea”.
Confira abaixo as duas notas enviadas pela Voepass à reportagem:
Nota 1
No dia 9 de agosto de 2024, vivemos o episódio mais difícil de nossa história. A queda do voo 2283, na região de Vinhedo (SP), resultou em perdas irreparáveis.
Um ano depois, seguimos solidários às famílias das vítimas, compartilhando uma dor que permanece presente em nossa memória e em nossa atuação diária. Em mais de 30 anos de operações na aviação brasileira, jamais havíamos enfrentado um acidente.
Desde o início de nossa trajetória, sempre priorizamos a segurança, o respeito à vida e a integridade em todas as nossas decisões. A tragédia nos impactou profundamente e mobilizou toda a nossa estrutura, humana e institucional, para garantir apoio integral às famílias, nossa prioridade.
Nas primeiras horas após o acidente, formamos um comitê de gestão de crise e trouxemos profissionais especializados — psicólogos, equipes de atendimento humanizado, autoridades públicas, seguradoras, além de suporte funerário e logístico.
Desde o início, nosso cofundador, José Luiz Felício Filho, esteve à frente das ações, participando pessoalmente das reuniões com os familiares. Também apoiamos a participação das famílias na primeira reunião oficial com o CENIPA para a apresentação do relatório preliminar.
Temos atuado de forma transparente junto às autoridades públicas e seguimos empenhados na resolução das questões indenizatórias, já em estado bastante avançado. Mantemos o suporte psicológico ativo e continuamos apoiando homenagens realizadas pelas famílias ao longo deste ano. Nos solidarizamos com toda a forma de homenagem às vítimas do acidente.
Seguimos colaborando com as investigações em andamento, reafirmando nosso compromisso com a apuração dos fatos e contribuindo com a melhoria contínua nos processos de segurança da operação aérea. Continuamos caminhando com responsabilidade, humanidade e empatia. Nossa solidariedade permanece firme — com os familiares das vítimas, com toda sociedade brasileira.
Nota 2
A VOEPASS informa que sempre atuou cumprindo com as exigências rigorosas que garantem a segurança das suas operações aéreas e reitera que sua frota sempre esteve aeronavegável e apta a realizar voos, seguindo exigências de padrões de segurança internacionais, inclusive tendo a certificação IOSA, um requisito de excelência operacional emitido apenas para empresas auditadas IATA, além do acompanhamento periódico da ANAC como agência reguladora. Em 30 anos de atuação, em um setor altamente regulado, a segurança dos passageiros e da tripulação sempre foi a prioridade máxima da companhia.
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